Artigo de 03 de novembro de 2022, porém extremamente atual
ELEIÇÕES E ATAQUES À DEMOCRACIA
Quando falham as instituições, surgem homens excepcionais
Para
o novo governo, trata-se de aproveitar essas pequenas brechas que se
apresentam e recapturar os milhões de brasileiros que se afastaram de um
engajamento incondicional com os valores republicanos e democráticos.
A
longo da história, todos os países que passaram por graves crises
políticas que colocaram em risco sua democracia e sua república se
remeteram nas mãos e na coragem de raros homens que acreditavam mais que
todos os outros.
No
caso do Brasil da era bolsonarista, podemos apontar Luiz Inácio Lula da
Silva e Alexandre de Moraes como esses homens especiais.
Depois
da Segunda Guerra Mundial, quando a França já havia conseguido
normalizar o clima social e político deteriorado pela ocupação nazista, o
escritor e ministro André Malraux pronunciou um dos melhores discursos
já escritos na história francesa. Malraux, homenageando o herói da
Grande Guerra e chefe da resistência interior Jean Moulin, cujos restos
mortais entrariam no Panteão, lembrou que “o destino da França esteve
suspenso por um fio na coragem desse homem que tudo sabia e mesmo assim
nada falou” após longas horas de tortura.
Os
grandes nomes da resistência francesa ao nazismo foram De Gaulle e Jean
Moulin. Os grandes nomes que a história brasileira recordará depois das
eleições de 2022 são Lula e Alexandre de Moraes.
No
caso do Brasil da era bolsonarista, podemos apontar Luiz Inácio Lula da
Silva e Alexandre de Moraes como esses homens especiais.
Ambos
foram alvos de uma verdadeira máquina de mentiras e calúnia. O ministro
do Supremo e presidente do Tribunal Superior Eleitoral se tornou alvo
da extrema-direita e suas teses conspiracionistas. Ele também foi alvo
de críticas de grande parte de uma esquerda impaciente e imprudente;
mesmo assim, resistiu, se manteve firme e sereno e contrariou uma após
outra todas as jogadas covardes da extrema-direita que até o último
momento, até poucas horas antes do fechamento dos centros eleitorais,
acreditava na possibilidade de adiamento ou anulação da eleição.
Norberto
Bobbio, o grande pensador e filósofo italiano do século XX, perguntou
certa vez se era preferível para um país ter instituições fortes ou
grandes governantes. Na verdade, a história nos revela que em tempos de
paz as instituições sempre foram as melhores garantias da sobrevivência e
continuidade republicana. Porém, em tempos de grandes crises, todas as
grandes nações se abrigaram na coragem de homens e mulheres
excepcionais.
Esse
é um grande paradoxo das nossas democracias. Recorrentemente nos
vangloriamos da fortaleza das nossas instituições e tradições
republicanas, entretanto, inúmeros exemplos ao longo da história mostram
que a passagem de um regime democrático para um ditatorial muitas vezes
depende mais da força e firmeza de alguns raros homens.
Ministro Alexandre de Moraes como presidente do TSE.
O
ministro Alexandre de Moraes revelou-se ser um deles e por sorte não
tem a indecente ambição política de Sérgio Moro; de modo que com ele o
Brasil não corre o risco desse atroz mélange de genres.
Moraes, porém, terá mais trabalho e oportunidade de inscrever ainda
mais seu nome na história do Brasil e já sinalizou que compreende a
importância de seu papel decisivo. Trata-se de uma reforma das leis
sobre regulamentação das plataformas digitais. Durante a coletiva de
imprensa posterior ao anúncio dos resultados das eleições, ele afirmou a
necessidade de responsabilizar as plataformas dando-lhes status de
veículos de informação. Justíssimo!
Entretanto,
essa missão terá que contar com a participação de toda a sociedade
civil. E mais uma vez o Brasil pode ser pioneiro em sua legislação sobre
mídias digitais e internet. A realidade é que hoje a maior ameaça para
as democracias liberais do Ocidente são os disparos em massa de fake news.
A extrema-direita e a memória do nazismo
Os
quatro anos do governo Bolsonaro deixaram evidente que as instituições
brasileiras são facilmente corrompíveis, porém, o posicionamento recente
da maioria dos líderes das instituições e lideranças partidárias do
bolsonarismo mostraram também que têm em grande apreço uma vida política
institucionalizada. É outro paradoxo brasileiro. As instituições são
frágeis, mas os políticos se fortalecem no carreirismo.
Outro
ponto essencial que deve mobilizar os debates nos próximos dias é o
espaço ocupado por esses mais de 58 milhões de brasileiros que
escolheram Bolsonaro no último domingo. São todos extremistas e
fascistas? Certamente não. Mas muitos deles constituem essa massa
flutuante que navega entre o centro, a direita e a extrema-direita. Um
desafio político e ideológico do próximo governo consistirá em trazer
essas pessoas para o lado da democracia, talvez até por meio de medidas
econômicas e políticas públicas.
O
Brasil de Bolsonaro também cristalizou a posição do país longe do
secularismo e da laicidade. A centralidade do debate religioso durante a
campanha eleitoral, sobretudo, no segundo turno, e o fortalecimento dos
evangélicos como atores essenciais dos processos políticos são um
triste aviso de que a democracia brasileira perdeu uma característica
fundamental dos Estados modernos que é o “desencantamento do mundo”, a
separação da política com a esfera religiosa. De agora em diante, a
política brasileira será pautada pela temática religiosa. É uma
tendência que afeta também os Estados Unidos.
A
vitória de Lula, ou melhor, a vitória do campo democrático por meio de
uma aliança ampla que reuniu vários partidos políticos com fortes raízes
democráticas é uma oportunidade única de marginalizar a extrema-direita
no Brasil.
Retomando
as comparações com a Europa, vemos desde a eleição presidencial
francesa de 2002 quando Jean-Marie Le Pen chegou ao segundo turno, que
nesse país é comum uma frente ampla ser formada para barrar a
extrema-direita; de tal forma que não se vislumbra no horizonte seu
acesso à presidência da república. É óbvio que a extrema-direita se
tornou uma força política na França, mas ela não é uma força capaz de
chegar à presidência. O motivo dessa impossibilidade é histórico e
cultural no sentido em que a extrema-direita francesa é intimamente
relacionada na memória dos eleitores com a ocupação nazista e a
colaboração durante o regime de Vichy. No Brasil, essa associação com o
nazismo é de frágil demonstração.
No
máximo, se pode relacionar a extrema-direita com a ditadura militar.
Contudo, hoje, seus laços parecem ser mais fortes com os grupos
religiosos evangélicos mais radicalizados do que com a memória da
ditadura militar. Por isso, aumenta no Brasil a dificuldade da formação
de uma frente ampla contra a extrema-direita.
Dito
isso, é preciso tomar alguns cuidados na análise. A tese de que o
bolsonarismo é forte precisa ser relativizada. E nem o Bolsonaro é tão
forte fora da presidência.
Não
significa que o conservadorismo (e seus aspectos religiosos) seja fraco
no Brasil. Me refiro à figura de Bolsonaro como sendo central na
articulação desse conservadorismo. É esse ponto que deve ser
relativizado. Muitos dos seus aliados de primeira hora foram atacados
pelos filhos e o “gabinete de ódio”. Os recentes aliados sabem que é um
risco que sempre vai existir com eles. Se vislumbrarem a possibilidade
de tirar os filhos da cena política, não hesitarão.
A
presteza, domingo, de vários bolsonaristas em reconhecer sua derrota já
indica essa tendência. Bolsonaro pode se manter importante nos próximos
anos, mas precisará demonstrar muita inteligência política. O
comportamento mais óbvio que se esperaria dele seria continuar sendo
relevante mantendo a postura truculenta que sempre o caracterizou. Ele
aposta na agitação. Isso mantém o engajamento de alguns radicais, mas
não durante quatro anos. Além disso, há um risco político para ele caso
aposte por promover uma agitação desmedida que pode irritar a Justiça. E
sabemos que não é uma boa ideia num país como o Brasil onde o Poder
Judiciário já mostrou que é propenso a intervir nos processos políticos.
Portanto,
para o novo governo, trata-se de aproveitar essas pequenas brechas que
se apresentam e recapturar os milhões de brasileiros que se afastaram de
um engajamento incondicional com os valores republicanos e
democráticos. Esse é um dos grandes desafios da sociedade brasileira nos
próximos anos: marginalizar ao máximo o campo da extrema-direita
ampliando a adesão popular à democracia.
Serge Katz é doutor em Sociologia pela UFPB
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